[Tradução] Sheikh Jarrah: A questão diante de nós

Coletivo Dinamene
6 min readMay 20, 2021

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Esta tradução faz parte da “A questão palestina”.

Por Sarah Ihmoud. Publicado em 16 de maio de 2021 na Jidaliyya (revista independente produzida pelo Arab Studies Institute)

Traduzido por Ana Kinukawa, Isabella Tie Harano Padrão, Juliana Kushida e Mariana Mitiko Nomura

A primeira vez que ouvi a história de Sheikh Jarrah foi de uma criança deslocada de seu lar com sua família em 2009. Eu era uma jovem (e admitidamente inexperiente) antropóloga passando os meus primeiros meses “em campo”, tentando compreender o que acontecia em Jerusalém. A pequena menina da família al-Ghawi, que na época tinha 5 anos de idade, contou-me sobre a noite na qual ela foi forçada a sair de sua casa em Sheikh Jarrah. Ela descreveu como homens vestidos de preto invadiram sua casa, atirando-a, junto com sua mãe e seus irmãos, nas ruas. Ela contou em minúcias sobre como ela foi tomada por um sentimento de medo ao serem cercados por centenas de soldados e colonos. A face de sua mãe expressava dor enquanto a filha falava — e falava daquele jeito direto que as crianças têm de falar, um jeito de falar de quem ainda não foi submetido à pressão das emoções performáticas — sobre dormir e se banhar nas ruas, sobre sentir saudades do balanço de brinquedo no quintal, sobre perguntar-se o porquê de uma família judia, incluindo duas crianças, vir e tomar sua casa enquanto ela era forçada a dormir, comer e se banhar do lado de fora. O lar, o balanço de brinquedo, a memória da risada de sua mãe enquanto colhia um limão do limoeiro: a ecologia do espaço [no original, ecology of place] para uma criança, seu sentimento de segurança, conforto e pertencimento desenraizados pelas demandas de outra família.

A necessidade humana de pertencer é uma coisa poderosa. Pertencimento, em seu sentido mais estrito, diz respeito aos laços emocionais, é um sentimento de estar ’em casa’ e ‘seguro’. Esse profundo desejo humano é frequentemente entendido por meio de visões de mundos que essencializam, fixam e naturalizam identidades coletivas, fronteiras nacionais e diversas hierarquias, como a racial. Ao longo da história humana, o pertencimento tem sido naturalizado e, como Nira Yuval-Davis nos lembra, politizado “somente quando [o pertencimento] está, de certa forma, ameaçado”, instrumentalizado para justificar e promover posições de poder e privilégios e, às vezes, as mais agudas formas de violência. Por meio dos apelos racistas de “pertencimento”, nações policiam e impõem fronteiras entre o “Eu” e o “Outro”. No contexto colonial, o colonizador usa todas as formas de violência — desde a expropriação das terras e da propriedade à força militar bruta e até ao aparentemente benevolente, mas não menos violento, sistema legal e judicial — para policiar a fronteira entre ele e o colonizado. O mito sionista de pertencimento a apenas um Estado-nação, um pertencimento encenado na necessidade de salvar um povo após a violência genocida do Holocausto, tem sido utilizado por quase um século para angariar apoio na extinção genocida de outro povo, os palestinos. É a partir dessas mesmas dinâmicas que se ancora a disputa contínua pela cidade de Jerusalém à medida que se desenrola a luta diária para salvar Sheikh Jarrah.

Eu compartilhei com a pequena menina como meu próprio lar em Turmosayya, um vilarejo na Cisjordânia ocupada, foi também dominado pelos colonos. Contei a ela como os colonos haviam incendiado as fundações de uma casa que meu pai havia construído em sua cidade ancestral depois de voltar do exílio décadas atrás. Aqueles de nós que crescemos palestinos, que tiveram nossa infância na Palestina negada de alguma forma, entendemos a um nível visceral que esta não é uma história nova.

Nos últimos dias nós presenciamos, mais uma vez, a escalada da violência colonial travada contra um povo nativo que defende seus lares e suas terras. Nós testemunhamos famílias de Sheik Jarrah serem brutalmente arrastadas e espancadas em seus próprios lares e nas ruas por simplesmente estarem ali presentes. Nós vimos suas casas serem pulverizadas com skunk [nota de tradução: ‘skunk’ é uma espécie de gás com cheiro pútrido utilizado sistematicamente pelas forças israelenses] e balas de borracha. Nós notamos a evidente disparidade no tratamento dos colonos judeus fortemente armados, que têm permissão para vagar livremente e aterrorizar palestinos, e palestinos, que são brutalizados à luz do dia, a quem são negados o direito de credo em seus espaços sagrados, e que são representados na mídia como selvagens que deveriam receber tiros, ser mortos e ser deslocados. Nós assistimos como, previsivelmente, uma Gaza cercada se tornou um bode expiatório, dez crianças palestinas já tendo pago o preço com suas vidas até agora.

Se o mundo hoje se tornou uma Palestina global, Jerusalém é o espaço paradigmático da fronteira. Mas nomear Jerusalém como mero espaço de fronteira seria incompleto, pois a fronteira não é apenas um espaço geográfico onde regimes de pertencimento são feitos e desfeitos, selando e criando uma entidade enquanto excluem outra. A fronteira também não é apenas um espaço limítrofe que marca o alcance da violência legalmente sancionada. É uma ampla faixa composta por povos que foram pintados como o “Outro”, cuja própria subjetividade encarna, executa e ultrapassa o espaço da fronteira — aqueles considerados externos ao Estado, aqueles categoricamente excluídos da esfera dos cidadãos ou a quem foi concedida uma humanidade parcial (na melhor das hipóteses) utilizada pelos Estados para criminalizar e violar. O espaço da fronteira — e aqui estou falando das fronteiras do Humano, ou o que Sylvia Wynter chama de “colonialidade do ser”, que a cosmologia Universal que tornou descartáveis certas vidas humanas em face a categorias diferenciais de valor — é, portanto, inerente ao que significa ser palestino. É por essa razão que o apagamento palestino na colônia nunca foi contra a lei israelense, mas, pelo contrário, sancionado como lei. O deslocamento forçado de uma família palestina não provoca nenhuma intervenção de líderes globais; o linchamento de um palestino por uma multidão de colonos israelenses não provoca nenhum sentimento de indignação moral massiva; nosso discurso perpetuamente incivil; nossos corpos indisciplinados, nosso sofrimento ininteligível.

Enquanto me desenhava uma imagem de sua casa, a criança palestina contou de uma manhã em que a mãe, colona, saiu nos degraus da entrada para oferecer um ovo de café da manhã. Ela tinha acordado alguns momentos antes, enrolada em um saco de dormir ao lado de sua mãe, irmãos, e pai na rua em frente à sua casa. Quando eu perguntei se ela pegou o ovo, ela me lançou um olhar tão incrédulo que eu senti vergonha por ter feito aquela pergunta. Não, ela disse, ela não pegou o ovo. Ela disse à mulher que não queria um ovo da mesa dela, ela queria a casa dela de volta.

A situação que se desdobra em Sheikh Jarrah, o último ponto focal da luta para proteger a identidade dos palestinos originários de Jerusalém, não é complexa, mas é facilmente compreendida do ponto de vista de uma jovem criança que teve algo roubado dela, um ponto de vista que abarca, bem visceralmente, um senso moral do certo e do errado. Você tomou a minha casa, e eu a quero de volta.

Como este gesto de recusa (um pequeno, mas poderoso ato de rebeldia que define uma Palestinidade [no original, Palestinianness] que recusa o apagamento), a luta contínua dos palestinos para defender seus lares, para recusar serem violentamente arrancados de Jerusalém, é um lembrete de que a descolonização não é um substantivo abstrato. É um verbo que implica ação.

Mas o que está em jogo aqui não é meramente a destruição da identidade palestina de uma cidade que é um espaço de profundo significado religioso e histórico para muitos ao redor do mundo. É muito mais do que isso. O que está em jogo é se continuaremos a permitir a violência e a destruição de uma visão mais expansiva, mais pluralista de humanidade, ou se destruiremos, de uma vez por todas, o próprio sentido de espaço de fronteira como uma forma de violência que inerentemente expulsa certos corpos e povos racializados da categoria imperativa de ser humano. O que está em jogo em Sheikh Jarrah é se nós continuaremos a permitir um nacionalismo baseado na exclusividade, na expropriação violenta e transferência forçada de negros, marrons e indígenas; o crescimento exponencial das fronteiras militarizadas, a expansão da polícia estatal, a exploração da ideia de segurança e proteção e pertencimento de um povo exclusivo, às custas da destruição em grande escala de um outro. A questão diante de nós é esta: continuaremos a permitir que o Estado de Israel perpetue a violência colonial e a supremacia branca enquanto reivindica exclusividade sobre Jerusalém, sobre a Palestina? Ou nós ateamos fogo no mundo e nos juntamos aos nossos irmãos palestinos para lutar, com amor e determinação, não apenas pela sua liberdade, mas também pela nossa.

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