Sobre a sinofobia e a candidatura de Letícia Pan em Curitiba

Por Mavi e Kodo

Coletivo Dinamene
3 min readNov 10, 2020

Em ocasiões anteriores, tratamos da relação complexa entre os mitos da minoria modelo e do perigo amarelo nos discursos correntes sobre o papel social dos asiático-brasileiros. Neste texto, pretendemos trazer essa discussão para um caso concreto, a candidatura de Letícia Pan, filha de um imigrante da província de Henan, na China, a vice-prefeita de Curitiba pela chapa de Francischini, do PSL.

É fato que, nessas eleições, diversos candidatos asiáticos estão disputando cargos ao redor do Brasil, majoritariamente sob plataformas conservadoras. O caso de Pan, no entanto, chama atenção pelo seu contexto, que envolve uma aparente contradição: enquanto o governo Bolsonaro e seus aliados se engajam numa forte campanha sinofóbica como forma de reforçar seu apoio à hegemonia geopolítica dos Estados Unidos, esse mesmo bloco político opta por lançar uma candidata sino-brasileira num importante centro regional do país, onde o bolsonarismo desfruta de um apoio considerável.

Francischini, além de candidato pelo antigo partido do presidente, é ele mesmo uma figura reacionária: na qualidade de secretário de segurança do ex-governador Beto Richa, foi responsável pelo massacre contra os professores estaduais em 29 de abril de 2015, e em sua campanha promete garantir segurança aprofundando a repressão policial, dizendo que “bandido não terá vez”.

Embora as sondagens tenham mostrado uma grande diferença entre as intenções de voto para o atual prefeito e primeiro colocado Rafael Greca (DEM) e as de Francischini, este aparece empatado em segundo lugar. Neste cenário, que oferece à sua vice uma relativa viabilidade eleitoral e uma projeção considerável, é de se pressupor que a escolha de Letícia Pan para compor a chapa não tenha ocorrido por acaso, mas sim após uma cuidadosa análise de seus efeitos positivos e negativos sobre a recepção do eleitorado.

Se, por um lado, o fato de ser mulher e descendente de chineses poderia despertar rejeição entre os setores mais conservadores, por outro, sendo diretora do Hospital da Polícia Militar do Paraná e dirigente de uma empresa de exportação de commodities, Pan poderia se encaixar numa narrativa bastante apreciada por eles, a do imigrante asiático ou descendente que conseguiu prosperar com muito esforço e trabalho duro, em oposição aos negros e indígenas que, supostamente, prefeririam promover suas reivindicações e estimular conflitos sociais a se adequar ao que a sociedade espera deles para ascender socialmente.

Além disso, é possível que sua candidatura tenha sido planejada para servir de totem a esse grupo político, dissimulando suas posições racistas e xenófobas por trás de uma representatividade controlada. Nesse sentido, os bolsonaristas poderiam afirmar que seu estímulo à sinofobia é direcionado à suposta ameaça aos interesses nacionais representada pela emergência da China enquanto potência, e não às comunidades sino-brasileiras. Tentariam, dessa forma, evitar que estas assumissem uma posição mais firme em repúdio aos ataques sofridos.

Não se descarta, também, a possibilidade de que, a partir de sua construção enquanto figura pública, Pan possa servir como uma espécie de ponte para retomar o diálogo com a RPC sempre que as declarações anti-chinesas do governo suscitassem reações que abalassem as relações comerciais entre os países.

Os desenvolvimentos futuros poderão evidenciar se, promovendo a imagem da candidata, o PSL busca apenas formar mais um quadro político de expressão local ou se possui objetivos mais ambiciosos. Por ora, importa ressaltar que, assim como, historicamente, privilégios relativos foram concedidos às comunidades asiáticas para que servissem de para-choque nas lutas dos negros e indígenas contra a hegemonia racial branca, também há casos nos quais alguns indivíduos asiáticos são beneficiados para amortecer possíveis choques entre as suas comunidades e os interesses da branquitude. É necessário, portanto, que estejamos sempre atentos a essas figuras e busquemos estratégias para desmascará-las e oferecer alternativas a elas.

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