Dinamene, a Oriental

A sobrevivência da epistemologia orientalista hoje

Coletivo Dinamene
5 min readAug 10, 2020

Há séculos a humanidade vem sendo dividida entre Ocidente e Oriente, em termos geográficos, culturais e políticos. Intelectuais das mais variadas áreas e teorias concordam em afirmar que existe uma diferença quase que natural entre esses dois “polos” do globo terrestre, inconciliáveis e detentores de lógicas absolutamente contrastantes. De um lado, o Ocidente da tradição greco-romana e judaico-cristã, baseado em um suposto liberalismo individual e europeu, muitas vezes considerado superior por seu protagonismo geopolítico no colonialismo e no imperialismo. De outro, o Ocidente exótico, centrado nos eixos das civilizações árabes e chinesas, com uma “cultura admirável” mas “incompreensível” para os ocidentais, com lógica coletivista e onde o “respeito” teria mais valor.

Essas ideias são parte do senso comum que costumamos ter em nossa “civilização ocidental”. No entanto, convém questionar cientificamente: o que significa exatamente “Oriente” e “Ocidente”?

Edward W. Said, famoso intelectual palestino, debruçou-se sobre essa questão em sua obra Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, publicada pela primeira vez em 1978. Segundo Said, o Oriente não é mero fato da natureza, mas um produto de criação da dominação europeia. Em outras palavras, o Oriente só existe em contraponto ao Ocidente, e foi inventado para fortalecer uma relação de poder ao traçar a fronteira entre o Eu civilizado europeu e o Outro selvagem. As terras asiáticas, dessa forma, sofreram um processo de orientalização, ou seja, foram moldadas ao longo dos séculos através de um discurso hegemônico que as tornou orientais.

Esse estilo ocidental de dominação é justamente o conceito de Orientalismo dado por Said: um discurso que administra e produz o “Oriente” a partir do antagonismo entre a cultura europeia e o Outro. Mais que “uma simples coletânea de mentiras” ou “uma visionária fantasia europeia sobre o Oriente” (1), o Orientalismo pode ser entendido como um sistema de conhecimento forte e perene, decisivo para o sucesso do colonialismo e para a manutenção das relações geopolíticas no mundo contemporâneo.

Em seu livro, Said demonstra que nenhum intelectual está imune à enorme biblioteca que foi construída a partir da visão orientalista. Sua extensa pesquisa cita autores bastante diversos como Silvestre de Sacy, Ernest Renan, Karl Marx, Gustave Flaubert e outros. O que há em comum entre eles é a aceitação do Orientalismo como uma verdade, em uma crença quase que natural na incapacidade do Oriente de representar a si mesmo. Essa epistemologia, portanto, sobreviveu à industrialização, à modernização, às revoluções liberais, à globalização e à consolidação do capitalismo de maneira geral. Mais do que isso, o Orientalismo contemporâneo foi capaz de se metamorfosear, deslocando-se do eixo anglo-francês para o novo centro imperialista, os Estados Unidos. E, embora o século XX tenha assistido às independências de vários países “orientais”, o Orientalismo continua hegemônico nos dias atuais. Diante desse fenômeno, convém perguntar:

Como se representam outras culturas? O que é uma outra cultura? A noção de uma cultura distinta (ou raça, ou religião, ou civilização) é útil, ou sempre acaba envolvida em autocongratulação (quando se discute a própria) ou em hostilidade e agressão (quando se discute a “outra”)? As diferenças culturais, religiosas e raciais são mais importantes que as categorias socioeconômicas ou político-históricas? Como é que as ideias adquirem autoridade, “normalidade” e até o status de verdade “natural”? Qual o papel do intelectual? Ele existe para validar a cultura e o estado de que faz parte? Que importância ele deve dar a uma consciência crítica independente, uma consciência crítica de oposição? (2)

O discurso orientalista permanece em diferentes questões geopolíticas, sociais e culturais do nosso tempo. Alguns exemplos incluem:

  • O árabe é representado como uma caricatura derrotada e incompetente, auxiliando na construção da imagem da Palestina como uma terra sem povo destinada a ser ocupada pelo projeto sionista.
  • A imagem do islã como uma farsa natural do cristianismo, construída na Idade Média, é usada para converter todo árabe em naturalmente mau, e consequentemente inclinado a atos como o terrorismo.
  • A teoria do perigo amarelo, desenvolvida durante o início das migrações leste-asiáticas para os Estados Unidos, atualmente faz dos chineses seu principal alvo. Esse povo é retratado pelo “Ocidente” como perigoso, de hábitos sujos e estranhos.
  • Diante dos movimentos de diáspora, setores conservadores da sociedade buscam representar imigrantes com diferentes estereótipos (sempre adaptáveis, conforme a necessidade da época) para protestar contra sua entrada.
  • Em um fenômeno mais recente, os povos leste-asiáticos e seus descendentes, em especial os chineses, são pintados como os grandes culpados pela pandemia de Covid-19.

De maneira geral, os povos mais populosos da Ásia são retratados em uma caricatura de ameaça à hegemonia ocidental: o imigrante que toma os empregos; os filhos da diáspora que ocupam as universidades; os hábitos escatológicos que ameaçam a ordem ocidental; o terrorismo; a agenda cultural que tem como verdadeiro objetivo uma lavagem cerebral; os governos ditatoriais; o fundamentalismo irracional; etc.

Por trás da análise de Orientalismo está a tese de que a própria verdade é uma representação. O que se chama de verdade erudita não passa de um processo de acumulação realizado por gerações:

a questão real é se pode haver uma representação verdadeira de alguma coisa, ou se toda e qualquer representação, por ser representação, não está embutida primeiro na linguagem, e depois na cultura, nas instituições e no ambiente político daquele que representa. Se a última alternativa é a correta (como acredito que seja), devemos estar preparados para aceitar o fato de que uma representação está eo ipso implicada, entretecida, embutida, entrelaçada em muitas outras coisas além da “verdade”, que é ela própria uma representação. […] Dentro desse campo, que nenhum erudito pode criar sozinho, mas que cada erudito recebe e no qual encontra depois um lugar para si mesmo, o pesquisador individual dá a sua contribuição. Essas contribuições, mesmo para o gênio excepcional, são estratégias de rearranjar o material dentro do campo; até o erudito que revela um manuscrito outrora perdido produz o texto “encontrado” num contexto já preparado para o documento, pois esse é o real significado de encontrar um novo texto. Cada contribuição individual, portanto, primeiro causa mudanças dentro do campo e depois promove uma nova estabilidade, assim como, numa superfície coberta com vinte bússolas, a introdução da 21ª fará com que todas as outras estremeçam, para depois se estabilizarem numa configuração de acomodação. (3)

Encontrar é produzir, contribuir, criar. O Oriente é encontrado e criado pela erudição europeia das mais variadas formas há séculos.

Este texto foi produzido a partir de uma formação interna realizada entre integrantes do Coletivo Dinamene em março. Nós acreditamos no estudo para a mudança epistemológica como ferramenta política, e a partir das nossas considerações buscamos contribuir um pouco para um futuro decolonial.

(1) SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. EICHENBERG, R. (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 33.
(2) Ibid., p. 433, grifo do autor.
(3) Ibid., p. 365, grifo do autor.

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