A questão do imperialismo japonês

Sobre a relevância do debate

Coletivo Dinamene
8 min readNov 30, 2020

Desde o dia 15 de agosto deste ano, nosso coletivo vem realizando uma série de posts denominada A questão do imperialismo japonês. Entre imagens e textos curtos, buscamos esclarecer alguns capítulos importantes sobre o que foi o imperialismo japonês e como seus efeitos ainda perduram. Além de um vídeo introdutório, publicamos os seguintes posts: O início da empreitada expansionista, A anexação da Coreia, A colonização de Taiwan e Kyokujitsuki, a bandeira imperialista. A proposta foi de conscientizar e informar os nipo-brasileiros acerca dos horrores cometidos pelo Estado japonês contra outras populações asiáticas, aproveitando os 75 anos da sua rendição que marcam o ano de 2020.

Ao longo de nossas publicações, recebemos muitos elogios a respeito da iniciativa, mas também algumas críticas de pessoas que não concordavam com a relevância do tema. Outras diziam que, embora o Japão tenha um passado histórico complicado, não entendiam por que havíamos escolhido esse alvo em meio a tantas atrocidades cometidas na Ásia por diferentes países. Acreditamos que, apesar de que muitas dessas questões terem sido respondidas nos nossos posts, seria oportuno encerrar nossa série com uma redação mais extensa, registrando e condensando em um só texto os motivos que nos levaram a discutir o imperialismo japonês, e por qual motivo enxergamos tamanha relevância quanto ao tema na atualidade.

Como buscamos demonstrar em nossas publicações, o imperialismo japonês teve sua origem na Restauração Meiji, com a modernização do Japão e o planejamento de integração à ordem capitalista enquanto país industrializado. A necessidade de matéria-prima para essa indústria levou o país a se inspirar no modelo europeu do neocolonialismo, além de promover ideologias particulares para a dominação japonesa. Foi assim que surgiu o xintoísmo de Estado, que transformou crenças populares em algo institucionalizado e ideologicamente pensado para a adoração da figura do imperador. A manutenção e a expansão do território nacional foram possíveis graças à força que o controle das ideias tiveram em uma nação.

Essas ideias, hegemônicas e propulsoras de uma política militarista e imperialista durante quase um século, guiaram o Japão em crimes internacionais, tentativas de epistemicídio e guerras injustificáveis. Esse projeto, por fim, acabou voltando-se contra a própria população japonesa ao provocar o conflito com as forças estadunidenses que, após as batalhas do Pacífico, avançaram sobre o território japonês. Num momento em que qualquer resistência perene se mostrava improvável, perpetraram aquilo que podemos entender como os maiores atentados terroristas da história: as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, lançadas pelos Estados Unidos, foram instrumentos que transcenderam qualquer resquício de humanidade que poderia restar em uma guerra, e destruíram inúmeras vidas inocentes ‒ inclusive de povos colonizados pelo Japão que viviam nessas cidades à época. Isso ocorreu há apenas 75 anos.

O Japão se rendeu, de forma incondicionada, no dia 15 de agosto de 1945. Os anos seguintes foram de reconstrução do país e da tentativa de demonstrar a “superação” do período militar-fascista. A Constituição de 1946, no ainda sobrevivente artigo 9º, declarou que o povo japonês abria mão da guerra como solução para os conflitos, e proibiu a existência de forças armadas no país. Ao mesmo tempo em que exigiram esse dispositivo, os Estados Unidos impuseram uma série de acordos que fizeram do Japão sua “base militar” durante a Guerra das Coreias, na qual o Japão participou direta e indiretamente, enriquecendo às custas da destruição do povo coreano e do sacrifício de civis japoneses. Bases militares em Okinawa que permanecem até hoje também foram usadas de maneira estratégica para a Guerra do Vietnã. Ainda no contexto do pós-II Guerra, os Estados Unidos ocuparam (colonizaram) o território de Okinawa até 1972. No contexto de Guerra Fria, houve um acordo para que as estruturas políticas do poder japonês pré-Guerra fossem mantidas pelos estadunidenses, em troca da garantia de um aliado estratégico contra a União Soviética na região.

Na prática, significou o seguinte: a elite japonesa (política e econômica), com algumas exceções, se manteve como antes, sem responder pelos crimes de guerra cometidos. Os povos asiáticos não foram compensados de forma justa pelas violações de direitos internacionais, e os conflitos étnicos foram varridos para debaixo do tapete. Subitamente, o governo japonês que antes dizia ser um país etnicamente plural, onde todos os povos podiam se assimilar à cultura japonesa e serem admitidos como verdadeiros “irmãos”, passou a defender que só existia uma etnia japonesa, unida por uma linhagem milenar e reunida em torno do imperador. Este último, agora transformado em imperador-símbolo, foi inocentado do comando durante a II Guerra Mundial e apresentado como alguém cujos poderes teriam sido “sequestrados” por militares da alta cúpula ‒ estes sim responsáveis por “desvirtuar” a verdadeira “alma japonesa”, essencialmente pacífica e isolacionista.

Façamos as seguintes perguntas: como pode um país dizer que “se arrepende” de uma empreitada militar e manter o mesmo chefe de Estado, com os mesmos dirigentes políticos da mesma elite dominante? Como podem os mesmos políticos continuarem no poder, inclusive com diversos descendentes de figuras do período fascista governando ainda hoje? Como pode um partido erguido por essa elite dirigente se manter no poder de maneira praticamente ininterrupta há 75 anos? Podemos chamar isso de “superação” de um período fascista? Até que ponto a ideologia imperialista japonesa foi, de fato, derrotada em 1945?

Como é sabido, o Japão experimentou um crescimento econômico de grandes proporções na segunda metade do século XX. Aos poucos, o país foi conseguindo exportar uma imagem positiva de sua cultura, constantemente narrada no Ocidente como um exemplo de “combinação entre tradição e modernidade”. Embora saibamos que existiram inúmeros fatores geopolíticos internos e externos acompanhando esse desenvolvimento, o discurso do cool Japan encontrou apoio na grande mídia porque trazia a narrativa de um país que “deu certo” graças aos seus esforços capitalistas. Os descendentes das diásporas japonesas ao redor do mundo absorveram boa parte desses discursos, passando a acreditar consciente ou inconscientemente que as questões da guerra estavam resolvidas. Mesmo no Brasil, onde tivemos o famoso embate entre vitoristas e derrotistas, as últimas gerações de nikkei cresceram com a imagem de um “novo Japão”. Talvez seja a crença nessa imagem que faz com que muitos não compreendam a relevância de se falar em imperialismo japonês hoje.

Ao invés de varrer problemas para debaixo do tapete, precisamos confrontá-los em nome de uma verdadeira responsabilidade com os outros povos asiáticos. Precisamos ter a honestidade de enfrentar a dívida histórica para que a retórica imperialista nunca mais seja usada para fins discriminatórios. Isso é importante não só para a reparação e prevenção do sofrimento alheio, mas também para o bem-estar do povo japonês e de seus descendentes. É o nosso futuro e o nosso passado, a nossa culpa e a nossa responsabilidade como nipo-brasileiros que é colocada em cheque. Se é verdade que o autoflagelo e a autocrítica como um fim em si mesmo não levam a lugar algum, a inércia nos levará a nos afundar cada vez mais sob o peso de uma Ásia cindida pelo rancor. É importante que nós conheçamos o legado do período imperialista, e a forma com a qual ele sobrevive ainda hoje. Trazemos aqui alguns exemplos:

  • A questão das “mulheres de conforto” exploradas pelo exército japonês à época da guerra;
  • O avanço do Partido Liberal Democrata sobre o artigo 9º da Constituição japonesa, que garante o pacifismo, tentando excluí-lo;
  • As manifestações de ódio da extrema direita japonesa, toleradas pela justiça e pela mídia enquanto “liberdade de expressão”;
  • A presença massiva de bases militares dos Estados Unidos em cerca de 15% do território de Okinawa contra a vontade da população, sob anuência do governo nacional;
  • O sentimento antinipônico no leste asiático provocado pela vista grossa do governo japonês ao legado imperialista e a consequente escalada de tensões diplomáticas e ódio entre civis.

A opção pela informação e pela (re)educação que nosso Coletivo vem buscando realizar está ligada ao nosso projeto de uma Ásia diaspórica solidária. Quando falamos de solidariedade antirracista, a principal bandeira do movimento asiático-brasileiro, falamos também de uma solidariedade entre os povos que buscamos representar em nossas ações políticas. São os descendentes das diásporas chinesas, coreanas, árabes, japonesas, okinawanas, taiwanesas, entre outras. Sem enfrentar honestamente a questão do imperialismo japonês, a união e a concepção de uma Ásia baseada na solidariedade não será possível.

Por outro lado, é aqui, longe da Ásia geográfica, que enxergamos o potencial do nascimento dessa nova ideia de Ásia. São populações diaspóricas, especialmente em suas novas gerações, que podem, longe do seu continente, descobrir o que têm em comum umas com as outras. As pontes quebradas podem ser reconstruídas a partir de ações localizadas, pequenos gestos que buscam potencializar as nossas diferenças como algo positivo, como respeito e solidariedade na luta pela manutenção e compreensão dessas culturas. Enxergarmos uns nos outros a posição de imigrantes, sentirmos os traumas diaspóricos intergeracionais comuns a todos nós, e encontramos nessa partilha uma nova comunidade possível. A superação do rancor entre asiáticos é imprescindível para a nossa sobrevivência em terras estrangeiras e para a luta pelo reconhecimento de cada uma de nossas origens, culturas, comunidades e individualidades.

São os membros da comunidade nikkei que devem dar os primeiros passos na reconstrução dessas pontes, reconhecendo sua dívida histórica. Não é o Estado japonês, governado há décadas pela mesma elite política, que irá empreender esforços nesse sentido. Esse grupo também não representa a forma de pensar de todos os japoneses e seus descendentes. Mas os nikkei, como parte das representações que existem desse país, podem preencher o abismo deixado entre sua comunidade e as demais, através de ações e discursos realmente efetivos.

Ao refletir sobre a solidariedade entre indígenas e negros nos Estados Unidos, a pensadora bell hooks afirma que

Na lógica do patriarcado racista, machista e supremacista branco, o esquecimento é encorajado. Quando as pessoas não brancas se lembram de si mesmas, se recordam dos diversos modos como nossas culturas e comunidades foram arrasadas pela dominação branca, geralmente ouvimos das pessoas brancas que somos “amargos demais”, que somos “cheios de ódio”. A memória sustenta um espírito de resistência.

Que os nipo-brasileiros não reproduzam, mais uma vez, um hábito da branquitude! É preciso ter um lado, e nosso lado é o da memória como espírito de resistência, é o lado da solidariedade antirracista.

Essa não será a última vez em que teremos de falar em consciência e reparação histórica. Esperamos que os nikkei que nos acompanham não fujam dessa discussão, e que encarem a questão do imperialismo japonês com a honestidade e a responsabilidade que também motivaram essa série de atividades do coletivo.

Coletivo Dinamene
30 de novembro de 2020

Para escrever este texto, o Coletivo usou ideias de várias autoras e autores que têm acompanhado nossos estudos. Embora a proposta não seja de uma redação acadêmica rígida, aproveitamos este espaço para conferir os justos créditos pelas ideias de cada um que nos ajuda na caminhada decolonial:

  • Sobre as mudanças no discurso étnico oficial japonês, usamos o livro Tan’istuminzoku shinwa no kigen: “nihonjin” no jigazouno keifu, de Eiji Oguma. Há tradução em inglês disponível sob o título A genealogy of ‘Japanese’ self-images.
  • Para uma noção mais aprofundada sobre o imperialismo de maneira geral, ver Cultura e imperialismo, de Edward Said. Como sempre, o livro Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, também está presente como referência das nossas reflexões.
  • Boa parte das contribuições de detalhes sobre os fatos históricos foram verificados através do canal 1945 nen e no michi (“O caminho para 1945”), disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCe4orPec2wQkhIwzng9R16A.
  • Para reflexões sobre representação e a posição do subalterno, ver Pode o subalterno falar?, de Gayatri Spivak.
  • Para a citação de bell hooks, consultar o livro Olhares negros: raça e representação, publicado em 2019 pela Editora Elefante, na página 335.
  • Em relação à referência da participação nipônica na Guerra das Coreias, ver The Korean War in Asia: a Hidden History, de Tessa Morris Suzuki, primeiro capítulo.

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